Resenha: Mulheres que mordem
- Michael Rios

- 23 de out. de 2018
- 3 min de leitura
Atualizado: 30 de mai. de 2019
As consequências de uma ditadura atravessam o tempo na história de quatro mulheres

Em um contexto político no qual a população se alterna entre o desejo constante de mudança e o medo do totalitarismo, Mulheres que mordem é uma leitura que surpreende ao mesmo tempo que alerta sobre como a ditadura é capaz de ultrapassar as barreiras geográficas e temporais.
Iniciei a leitura da obra despretensiosamente, enquanto pesquisava por autores brasilienses e suas participações em premiações importantes. Paulistana que vive em Brasília, Beatriz Leal entrega ao leitor um conjunto de personagens fortes e verossímeis. Logo me vi envolvido pela pelas quatro protagonistas, que levaram a obra a concorrer ao Prêmio Jabuti de 2016.
A narrativa se passa na época da ditadura na Argentina, e traz questionamentos sobre o papel da mulher na história da nossa sociedade e sobre como as liberdades adquiridas em um futuro democrático ainda são assombradas pelos terrores de um passado opressor.
De início, somos apresentados a Elena, esposa de militar que se vê presa em um casamento monótono incapaz de ter filhos. Mesmo nunca tendo pensado em adotar uma criança, ela decide receber em casa a pequena Laura. Em contrapartida a essa primeira narrativa, surgem as cartas de Rosa, uma senhora que sofre por precisar reconhecer no necrotério o corpo da filha, Clara, militante que morreu torturada nas mãos do regime argentino.
As histórias dessas personagens se cruzam e ganham novas nuances em meio à vida adulta de Laura e aos depoimentos de um dos torturadores de Clara. Com o desenrolar do livro, as “mordidas” do título passam a representar os infortúnios que cada uma das personagens encontra na vida. Elena tem a mania de contar os passos do marido e as mordidas que dá no cereal logo pela manhã. Rosa exibe unhas roídas, Laura destrói as cerdas da escova de dentes de tanto mordê-la, e Clara range os dentes durante a tortura sem deixar as palavras saírem.
Certo dia, Laura acorda pensando em morrer, embora não enxergue motivos para ser triste. Um infarto, um assalto na rua, um tiro certeiro, uma queda de avião. Um jeito rápido, prático, fácil e indolor que a exima da responsabilidade e a liberte do fardo que é viver. Para ela, o ápice de intimidade com outro ser humano é mostrar a escova de dentes destruída.
Já Elena deixa transbordar sua apatia com relação ao marido. “Quando conheceu Elena, Ramiro se apaixonou. Quando conheceu Ramiro, Elena também se apaixonou. Não por ele, mas por ela novamente, pela forma como ele a enxergava por trás dos olhos castanhos. Ele se apaixonou também pela ideia de poder ser amada pelo resto de sua vida”.
Os problemas de cada uma também refletem a época em que vivem, o que fica claro em uma das frases de Rosa:
“A sociedade em que cresci é injusta com as mulheres, uma vez que estabeleceu que nós somos definidas tendo como critério as pessoas que nos rodeiam. Quando perdi meus pais, fiquei órfã. Quando perdi o Jorge, fiquei viúva. E quando perco a minha única filha, numa perda inconclusa e inconcreta, eu fico o quê? A loucura se instala na pessoa quando ela está buscando respostas para definir a si mesma”.
O retrato de uma época
Mulheres que Mordem nos obriga a refletir sobre como períodos obscuros influenciam gerações. Os depoimentos do torturador de Clara nos fazem ver como o ser humano pode ser levado ao ápice da monstruosidade e, ao mesmo tempo, se eximir da responsabilidade por estar seguindo ordens do Estado. Como um assassino pode encarnar o diabo em certos momentos e, em outros, ser um bom homem perante a sociedade.
A maior parte das conexões entre as personagens é bem feita. A facilidade com que Laura encontra casualmente alguém do seu passado, e como eles passam a conversar sobre aquele período da ditadura em específico pode incomodar pela coincidência, mas a narrativa prossegue de forma sutil e não leva para um final previsível ou novelesco de reencontro.
Vale a leitura pela reflexão sobre o passado e nosso futuro, o papel das mulheres na sociedade, e pela aula que o livro oferece sobre como construir bons personagens em uma escrita leve e convidativa a todos os leitores.
Leia!
Mulheres que mordem | Beatriz Leal
77 páginas | Ímã Editorial
R$ 6,99 (versão digital)
R$ 45 (versão física)



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