Entrevista: Cristiane Sobral - A delícia de ser quem somos
- Redação

- 15 de fev. de 2019
- 5 min de leitura
Atualizado: 30 de mai. de 2019

"A delícia e a beleza de ser quem somos". Esta é, para Cristiane Sobral, a grande mensagem de sua obra. Autora de títulos como Não vou mais lavar os pratos e Só por hoje vou deixar o meu cabelo em paz, a escritora, poeta, atriz e dramaturga carioca sabe bem, desde muito nova, as dificuldades de tentar ser. E foi na escrita, bem como nas artes cênicas, que ela encontrou um caminho para mostrar ao mundo a beleza de sua existência.
"Escrevo porque é um prazer, uma necessidade, uma forma de reinvenção da minha própria identidade como mulher, como negra", diz, com a voz mansa. "Para que outras narrativas do nosso país também possam ser contadas, para que outras parcelas da população possam ver suas subjetividades representadas nas histórias. Para dar outros coloridos à literatura brasileira, que é uma coisa que eu amo fazer".

Cristiane Sobral nasceu no Rio de Janeiro, em 1974. Na década de 1990, escolheu Brasília como palco para seus múltiplos talentos, bem como para fazer história. Foi a primeira atriz negra formada em Interpretação Teatral pela Universidade de Brasília (UnB). Seu livro mais recente, Uma boneca no lixo, tem origem em um espetáculo que ela montou ainda na graduação. Foram 20 anos para ver o trabalho publicado.
"Estou muito feliz. É um projeto editorial bonito, com ilustrações do Emanuel Militão. Além das cenas, o livro traz as partituras musicais, já que a peça conta com algumas músicas", conta. "A ideia central da história é como é difícil ser diferente. Começa com o achado de uma menina negra dentro de uma lata de lixo em uma grande cidade. A partir daí, são 13 personagens que se alternam, todos com esse mesmo mote". O monólogo, que entra em cartaz em 2019, conta com a participação do Àse Dúdú, grupo de percussão tradicional de Brasília sediado em Taguatinga.

Literatura negra
Perguntada se o que escreve pode ser rotulado como "literatura negra" – e quais seriam as características dessa literatura – Cris Sobral diz que sente a garganta dar um nó. "Há um tempo eu tinha certeza, e acredito ainda, que existe sim essa literatura negra, que seria uma literatura produzida por autores negros que se comprometem com a subjetividade negra, com as historias do nosso povo, de nossa ancestralidade, que têm também uma pesquisa linguística com relação a essa temática e escrevem para esse público. Mas hoje vejo também que, sobretudo, sou produtora de literatura brasileira. Posso dizer que eu sou uma escritora negra produzindo literatura, então literatura de autoria negra".
Para Sobral, é necessário que os livros produzidos no Brasil representem a diversidade de nossa população, composta em mais de 50% por pretos e pardos, e que os leitores se proponham a fazer uma reflexão: quantos autores e autoras negras você já leu? Isso é representativo dentro do universo de autores que você consome? Por quê? "Marcar a minha existência no escopo da literatura brasileira é um ato estético e político", completa a escritora.
Segundo a avaliação de Cris Sobral, o mercado para autores negros que tentam fazer carreira na capital brasileira é ainda mais complicado. "Não é um grande centro, se a gente pensa em editoras, mercado editorial, distribuição. Então o escritor negro aqui do DF vai encontrar os desafios que um escritor iniciante enfrenta, mas com esse agravante de que todos os recursos de editais, de apoios, estão principalmente nos grandes centros. Nós que estamos aqui no Centro-oeste ficamos automaticamente de fora de algumas oportunidades em concursos, salvo os nacionais. São essas questões que se colocam mais desafiadoras ainda".
Pontos de vista e lugares de fala
Abrir o mercado editorial cada vez mais para novos olhares e perspectivas. Ajudar a reescrever a história do país por um viés menos eurocêntrico e mais autêntico. Fazer uma releitura dos grandes temas do Brasil. Para Cristiane Sobral, essas podem ser as grandes contribuições dos autores hoje marginalizados caso encontrem espaço nas prateleiras e nas bibliografias dos leitores brasileiros.
"Contar a história da colonização partindo do ponto de vista do colonizador, dizer que os índios não foram escravizados porque eles resistiram... isso é o que está posto. É muito diferente quando alguém que é negro vai iluminar os movimentos de luta contra a escravidão que sempre existiram, mas os livros de história não contam. A gente vê essa imagem do negro passivo, submisso. Temos que falar das perdas econômicas que nosso país tem em função dessa insistência eurocêntrica, porque temos muitas perdas por não valorizar o que é nacional. São muitos os temas, e principalmente as vozes, que precisam ser outras vozes a contar".
Para Sobral, é urgente que o negro deixe de ser apenas retratado e passe a ser quem retrata, o protagonista de sua própria história. "Todo mundo acha que sabe falar sobre o negro, sobre a negritude, sobre o cabelo do negro. Mas, quando ele mesmo vai falar, é diferente. Será que essa mulher negra hipersexualizada, passista da escola de samba que está no imaginário de todos, quando for contar sua própria história, vai dar este mesmo foco?", questiona.
Literatura sem idade

Entre os múltiplos talentos de Cristiane Sobral, está a habilidade de falar com públicos de todas as idades e de inspirar o amor pela literatura até mesmo nos mais novinhos. Com seus filhos não seria diferente.
"Minha filha está publicando um livro agora, Tainá – a guardiã das flores, e ela tem só oito anos. As pessoas ficam espantadas, mas desde bebê o processo para ela foi algo natural. No momento em que ela brincava com os livros, fazia casinha, montava. Quanto mais contato for possível ter com o livro, mais natural se torna esse encontro. A leitura precisa ser uma oferta para todos".
O livro de Ayana Sobral, escrito em parceria com a mãe, conta a história de Tainá, menina negra que mora em um país do tamanho de um estádio de futebol conhecido por ter as flores mais lindas do mundo. As lindíssimas ilustrações que completam a obra são de Neliane Maria, ou NeMaria, como se apresenta. Com seus traços, a artista busca "divulgar o protagonismo de outras mulheres que se destacam na História, nas artes, nas ações políticas e na luta feminista, além de valorizar a cultura africana e afro-brasileira". Clique aqui para saber mais sobre a ilustradora.
A AUTORA RECOMENDA
Blogueiras negras - blogueirasnegras.org
Outras obras de Cristiane Sobral
Terra Negra Cristiane Sobral nos desnuda com uma poesia cheia de personalidade, cores, aromas, densos enredos e escreve como tribo. Conhecedora. Caminha sem solidão porque traz as hordas dos povos em diáspora inebriados e entrelaçados em sua narrativa ética, estética e caudalosa. Curiosa sua arte, lindo o seu tear, minha querida Cristiane. A voz de uma mulher negra é a voz que se nega ao silenciamento, a voz que se impõe à porta da Casa Grande e entra. Arrebenta a tranca e ainda tem que provar, a cada balcão, o que é, quem é, e porque o é. Cansa até. Como a poesia é feita do impacto entre a poeta ou o poeta e sua experiência de viver, está presente todo o tempo, nas escuridões de Terra Negra, a luta existencial de todas nós.
Coletânea de contos em que Cristiane Sobral aborda temas como empoderamento negro, discriminação racial e colorismo. O livro apresenta diversas personagens femininas que lutam por superar as barreiras sociais para alcançar seus objetivos. A tessitura dos contos que Cristiane Sobral nos apresenta no inspirado “O tapete voador”, quando observadas com atenção para as tentativas de categorização, não consensuais, de uma “Literatura negra brasileira contemporânea de autoria feminina”, fornece, para nós leitores, alguns elementos importantes de análise do universo ficcional por ela bravamente erguido. Na perspectiva desta literatura, encontramos nas narrativas deste livro a valorização de diversos aspectos constituintes da identidade negra, e em especial, a inserção da mulher negra autora e personagem da vida e de seus abismos, o que não é pouco, tratando-se de uma literatura brasileira que tradicionalmente privilegia, como autores e personagens, homens brancos e seus discursos.
Você também pode adquirir estes e outros livros da autora entrando em contato com ela pelo e-mail livroscristianesobral@gmail.com.






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